Monday, December 8, 2008

abrindo espaços íntimos - II

ela sabia que a entrada daquele homem pela porta de sua casa não era uma coisa banal. não chegava a ser um terremoto, mas se preparava para alguns deslocamentos geológicos na sua alma. diria que ela propiciava que isto acontecesse, como se ali fosse se cumprir um ritual. e seria bom que ele também soubesse disto, que as pessoas não deviam entrar numa vida, numa casa e consequentemente num corpo de maneira desatenta e egoísta. a casa é lugar de permanência, mais que motel ou hotel. exige cumplicidades mais delicadas.
contudo, precavida quanto a essa noção de permanência, sabendo que a vida às vezes é um deserto por onde passam caravanas e tuaregues, admitiu que já seria bom se a casa se convertesse num oásis.
os primitivos sabem melhor que nós, pretensos civilizados, que estabanadamente banalizamos tudo, que o ritual é que dá sentido aos fatos. mínimos gestos ou certos instantes podem se tornar históricos se estiverem entranhados desse ritmo denso de adágio que têm os rituais.
cruzar um umbral, a soleira, ultrapassar um limite são coisas graves.
porque uma coisa é o ver, o aproximar-se, o apertar a mão, dar um sorriso e se tocar progressivamente procurando intimidade. mais do que ocupar espaços, isto é ir povoando espaços. externamente é quando os amantes vão se ampliando, se alongando e habitando conjuntamente o que é público: o cinema, o restaurante, a caminhada na praça ou praia. mas, de repente, estar na casa, na sala, no quarto, no toalete do outro, ver as roupas dependuradas nos cabides, a escova e os grampos na bancada junto à pia, os vidros de perfume, aqueles objetos de decoração na mesa da sala, cinzeiros de prata, uma escultura da polinésia ou cópia de uma santa barroca, isto, convenhamos, é estar com a alma exposta. 
é como abrir portas, janelas e gavetas. há o inesperado. e as pessoas e casas, o que são senão gavetas dentro de gavetas, caixas dentro dentro de caixas? então, ir se aproximando de alguém, penetrar no espaço físico onde a figura amada habita é ir, como na estrutura da caixa chinesa, que contém outra caixa menor, que contém outra menor ainda, que contém outra e outras, até, enfim, chegar ao latente coração do outro.
essa mulher está reodeada de objetos que tiveram outra história, outras histórias. e durante algum tempo, como se estivesse num luto secreto, adiou reinaugurar o leito, reencenar os gestos, esperar que outro homem fizesse brotar nela arrebatamentos em insuspeitas regiões de seu corpo.
até os objetos se deram conta que ela está oferecendo algo muito delicado. daí uma cumplicidade entre os objetos da casa e o corpo dessa mulher. eles também esperam que que esse homem venha como um cauteloso conquistador. há uma expectativa no ar, a cômoda barroca guarda em suas volutas e elipeses alguma tensão conscientes de seu papel de coadjuvantes.
se ele, em vez da delicadeza do gato que é capaz de passar por taças de cristal sem quebrá-las , for do tipo invasor, um godo ou visigodo, que não controla os limites de seu corpo e fala preenchendo tudo egocêntrica e desatentamente, então ocorrerá uma inapelável ruptura, a profanação do instante.
ela gostaria que ele chegasse como o viajante que vindo de longe, no entanto, fala a sua língua. alguém que não extrapolasse do presente nem invadisse seu passado e futuro. que passado e futuro são coisas que competem a ela doar, quando e a quem os merecer.
ela o quer nos limites para os quais está preparada agora.
ela gostaria que ele chegasse com a virilidade suave de um anjo. e quando despertasse no dia seguinte tivesse aquela sensação do mito antigo, de que um deus dormiu lá em casa. tranquila ela veria que a casa e todos os objetos estariam em ordem. só que encantados. encantados como ela, que encantada sai para um novo dia com um sorriso de posse e confiança.
e se ela olhasse para trás veria que os objetos da casa a contemplam cúmplices e igualmente felizes.
por affonso romano de sant'anna

abrindo espaços íntimos - I

Sunday, December 7, 2008

tempo de delicadeza - I

sei que as pessoas estão pulando na jugular umas das outras.
sei que viver está cada vez mais dificultoso.
mas talvez por isto mesmo ou talvez devido a esse maio azulzinho, a esse outono fora e dentro de mim, o fato é que o tema da delicadeza começou a se infiltrar, digamos, delicadamente nessa crônica, varando os tiroteios, os sequestros, as palavras ásperas e os gestos grosseiros que ocorrem nas esquinas da televisão e do cinema com a vida.
talvez devesse lançar um manifesto pela delicadeza. drummond dizia: "sejamos pornográficos, docemente pornográficos". parece que aceitaram exageradamente seu convite, e a coisa acabou em "grosseiramente pornográficos". por isto, é necessário reverter poeticamente a situação e com vinicius de moraes ou rubem braga dizer em tom de elegia ipanemense:
meus amigos, meus irmãos, sejamos delicados, urgentemente delicados.
com a delicadeza de são francisco, se pudermos.
com a delicadeza rija de gandhi, se quisermos.
já a delicadeza guerrilheira de guevara era, convenhamos, discutível. mas mesmo ele que andou fuzilando pessoas por aí, também andou dizendo: "endurecer, sem jamais perder a ternura".
essa a contradição do ser humano. vejam o nosso sedutor e exemplar vinicius, que há vinte anos nos deixou, delicadamente.
era um profissional da delicadeza. naquela sua pungente "elegia ao primeiro amigo" nos dizia:
mato com delicadeza. faço chorar delicadamente
e me deleito. inventei o carinho dos pés; minha alma
áspera de menino de ilha pousa com delicadeza sobre um corpo de adúltera.
na verdade, sou um homem de muitas mulheres, e com todas delicado e atento.
se me entediam, abandono-as delicadamente, despreendendo-me delas com uma doçura de água.
se as quero, sou delicadíssimo; tudo em mim
desprende esse fluido que as envolve de maneira irremissível
sou um meigo energúmeno. até hoje só bati numa mulher
mas com singular delicadeza. não sou bom
nem sou mau: sou delicado. preciso ser delicado
porque dentro de mim mora um ser feroz e fratricida 
como um lobo.
está aí: porque somos ferozes precisamos ser delicados. os que não puderem ser puramente delicados, que o sejam ferozmente delicados.
houve um tempo em que se era delicado. e rimbaud, que aos dezessete anos já tinha feito sua obra poética, é quem disse um dia: "por delicadeza, eu perdi minha vida".
intrigante isso.
há pessoas que perdem lugar na fila, por delicadeza. outras, até o emprego. há os que perdem o amor por amorosa delicadeza. sim, há casos de pessoas que até perderam a vida, por pura delicadeza. não é certamente o caso de rimbaud, que se meteu em crimes e contrabandos na áfrica. o que ele perdeu foi a poesia. e isto é igualmente grave.
confesso que buscando programas de televisão para escapar da opressão cotidiana, volta e meia acabo dando em filmes ingleses do século passado. mais que as verdes paisagens, que o elegante guarda-roupa, fico ali é escutando palavras educadíssimas e gestos elegantemente nobres. não é que entre as personagens não haja as pérfidas, as perversas. mas os ingleses têm uma maneira tão suave, tão fina de serem cruéis, que parece um privilégio sofrer nas mãos deles.
tudo é questão de estilo.
até aquele detestável bukowski, sendo abominável, no entanto, num poema delicado dizia que gostava dos gatos, porque os gatos tinham estilo. é isso. é necessário, com certa presteza, recuperar o estilo felino da delicadeza. 
a delicadeza não é só uma categoria ética. alguém deveria lançar um manifesto apregoando que a delicadeza é uma categoria estética.
ah, quem nos dera a delicadeza pueril de algumas árias de mozart. a delicadeza luminosa dos quadros dos pintores flamengos, de um vermeer, por exemplo. a delicadeza repousante das garrafas nas naturezas mortas de morandi. na verdade, carecemos da delicadeza dos adágios.
vivemos numa época em que nos filmes americanos os amantes se amam violentamente, e em vez de sussurrarem "i love you" arremetem um virótico "fuck you".
sei que alguém vai dizer que com delicadeza não se tira um mst - com sua foice e fúria - dos prédios ocupados. mas quem poderá negar que o poder tem sido igualmente indelicado com os pobres desse país a quinhentos anos?
penso nos grandes delicados da história. deveriam começar a fazer filmes, encenar peças sobre os memoráveis delicados. vejam o marechal rondon. militar e, no entanto como se fora um místico oriental, cunhou aquela expressão que pautou o seu contato com os índios brasileiros: "morrer se preciso for; matar, nunca".
a historiadora denise bernuzzi de sant'anna anda fazendo entre nós o elogio da lentidão, denunciando a ferocidade da cultura da velocidade. é bom pensar nisto. pela pressa de viver as pessoas estão esquecendo de viver. estão todos apressadíssimos indo a lugar nenhum.
curioso. a delicadeza tem a ver com a lentidão. a violência tem a  ver com a velocidade. e outro dia topei com um livro, a descoberta da lentidão, onde sten nadolny faz a biografia do navegador john franklin, que vivia pesquisando o pólo norte. era lento em aprender as coisas na escola, mas quando aprendia algo o fazia com mais profundidade que os demais.
sei que vão dizer: a burocracia, o trânsito, os salários, a polícia, as injustiças, a corrupção e o governo não nos deixam ser delicados.
_ e eu não sei?
mas de novo vos digo: sejamos delicados. e, se necessário for, cruelmente delicados.
tempo de delicadeza, por affonso romano de sat'anna

Monday, September 8, 2008

seu sami, de hilal sami hilal

palácio das artes, belo horizonte

quando a luz aquece

quando o inverno vai chegando, suas folhas, simples e escassas, caem. elas - as flores, rápidas e intensas, brotam. e reinam quando o céu é puro azul, todo para elas. depois vão embora. mas aí o chão já sentiu o gosto cor-de-roxo-rosa. e então fica a esperar até a próxima estação. e se recobrir de festa. é o conforto da primavera. nesta última florada faltou uma. ela também, suponho, sentiu falta das outras. por isso, como o vento, soprei estas delícias pra ti.

Wednesday, July 30, 2008

le marche - III

A GUERRA INTERIOR
POR LEOPOLD NOSEK
Analistas aprendem que crenças não existem em razão de sua adequação à realidade, do que chamamos verdade. Assim são os mitos, as religiões, as convicções políticas e as utopias. Eles se organizam em função de uma relativa eficácia para o viver, permitindo as relações e o convívio humanos. Pela sua força, criam realidades. E por isso não hesitamos em eliminar quem ameaça nossas crenças estabelecidas, aquelas que criam a possibilidade de descansarmos em outra subjetividade.
Por outro lado, um analista aprende também que sofremos por crenças equivocadas, organizadas num tempo que não corresponde à nossa vida atual. Pior que concepções impróprias, contudo, é a ausência de narrativas metafóricas que dêem conta do viver cotidiano. É a área do abismo, do trauma e do terror pessoal. A maior quimera é preferível à sua ausência. É função da clínica analítica a atualização dos sonhos e também permitir sua criação nos espaços aterrorizantes de sua ausência. Sérvios, por exemplo, justificam o extermínio dos bósnios relembrando o martírio de um certo rei Casemiro, morto em tropas otomanas no século 17. O conflito atual, incompreensível e traumático, encontrava sua razão de ser neste pesadelo anacrônico.
Da mesma maneira, o conjunto de comentários em relação ao conflito do Oriente Médio tem sido de uma simplificação extrema. Qualquer palavra de ordem anti-Bush ou antiimpério ganha imediatamente a simpatia de quem é crítico à globalização e aos tempos que correm. O mais comum é a torcida pelo mais fraco. Árabes e israelenses disputam esse lugar. Até gigantes do poder econômico e militar reivindicam esse duvidoso privilégio. A simplificação divide o mundo em bons e maus.
FIM DAS CRENÇAS
Depois de 1945, vivemos um período de relativa paz. O fim do equilíbrio da Guerra Fria, contudo, liberou um estado propício ao conflito. Sem rédeas, o sistema de produção de mercadorias e de "livre comércio" prospera incrivelmente. Tem a guerra com aliado, pronto a atuar na vanguarda. E esta se dissemina. Concentram-se mais e mais os recursos necessários para a produção. A riqueza crescente é, inevitavelmente, acompanhada de exclusão crescente.
Dentre as mazelas mais eloquentes deste processo, podemos isolar uma: a destruição de crenças tradicionais. Após dois séculos de ideologia e afirmação das nacionalidades, estas se revelaram ultrapassadas para ordenar o convívio dos grupos sociais. A velocidade das transformações não permite a organização de narrativas adequadas aos novos tempos, seja para própria adaptação, seja para propor alternativas. Há como que uma regressão a ideologias de outros tempos, caracteristicamente religiosas e fundamentalistas. Isso ainda é mais agudo onde os estados tiveram formação tardia e artificial, como é o caso no Oriente Médio.
Como solução imediata, constroem-se muros, tentando delimitar ilhas de paz. A separação, além de agudizar os conflitos, é impossível. Os países desenvolvidos precisam de mão-de-obra, o comércio e intercêmbio não são dispensáveis. O deslocamento é necessário. Mesmo com um shopping center no interior de um condomínio, há necessidade de percorrer caminhos. A impossibilidade de viver intramuros se expressa no sentimento de vulnerabilidade que experimentamos quando corremos para o espaço privado dos lares no tempo de rebeliões em presídios.
A guerra do Oriente Médio está também em nossas ruas. A impossibilidade estrutural de solução nos marcos dos conflitos atuais e na carência de narrativas construídas e de utopias atualizadas aponta para a má notícia: a guerra veio para ficar.
LEOPOLD NOSEK é membro do board da Associação Psicanalítica Internacional e coordenador do Comitê Internacional de Psicanálise e Cultura.

Sunday, May 4, 2008

le marche - II

culinária - III

pão do café da manhã de domingo, cuja massa foi preparada na noite anterior, depois de algumas discussões sobre neoconcretismo.
por marion

culinária - II

foi quando, num jantar despretencioso, o souflé de legumes foi promovido a quiche.

culinária - I

1. moqueca
2. pirão de banana-da-terra
3. aplestrudel
por laura e marion.
parfait!

dance with me - II

é como se tudo possuísse uma absurda capacidade de se relacionar: depois de assistir em 2suspiros o clip da banda nouvelle vague (porque o movimento artístico francês nouvelle vague é outra história), cuja canção é sensivelmente tocante; vi que a cena é, na verdade, um trecho do filme band à part (1964, de Jean-Luc Godard), que dentre outras coisas, encarna em Odile a pressa de descobrir e de sentir. 9 minutos e 43 segundos é o tempo da visita ao louvre. recorde concedido, mais tarde, em the dreamers (2003, de bernardo bertolucci): 9 minutos e 27 segundos. 1968 é o ano dos sonhadores. band à part ainda era uma criança, mas já citava the gold rush (1925, de charles chaplin). e nouvelle vague, a banda, é uma referência à "francesidade", cujos membros são considerados parte do que se chama "renouveau de la chanson française" e cujas músicas são todas covers.

Wednesday, April 23, 2008

uma busca rígida - II

é impossível, historicamente, um pensamento ser livre. portanto, revisem, todos, os seus dizeres de suas bandeiras. livre arbítrio é mais um eufemismo.

uma busca rígida - I

como romper com os eufemismos que contrabandeiam corpos, títulos, cargos, tributos; com os enxertos que, em mim e em você, retiram e aplicam toda epiderme, todo cordão, todo senso?

le marche - I

helichrysum helipterum

sempre-vivas: são chamadas por esse nome, porque são capazes de manter as cores e o aspecto vivo mesmo depois de secas

Saturday, March 15, 2008

Wednesday, January 9, 2008

eukaryota

experimentar a sensação de pertencer a algo ou a alguém é o que ele raramente conseguira encontrar em sua vida. na verdade ele sempre pertenceu - e essa sempre fora a sua fome, sede e luta - a uma vastidão infinita. alguma coisa sem nome, lugar ou qualquer outro tipo de registro, de tempo. estava ali, solto, pertencendo ao que não conseguia enxergar. mais tarde, descobrira que surgia em si um desejo de pertencer menor. entraria para um clube que o aceitasse como sócio? da equipe de balé clássico? da turma de simpatizantes pela causa da experimentação, yourself? do grupo de discussão de hermenêutica? ou se entregaria lânguido àquela paixão, ou se empenharia em constuir, sólida e persistentemente uma relação de conquista e de doação ao desconhecido amor de sua vida, aos queridos amigos que já haviam se adentrado, e que agora já não o era mais de todo stranger? às vezes tem a clara lucidez de que pertence, mas depois, é como clarice disse: "a vida me fez de vez em quando pertencer, como se fosse para me dar a medida do que eu perco não pertencendo. e então eu soube: pertencer é viver. experimentei-o com a sede de quem está no deserto e bebe sôfrego os últimos goles de água de um cantil. e depois a sede volta e é no deserto mesmo que caminho."

Tuesday, January 8, 2008

sublimação

por aqui tudo escorre, quando por vezes, evapora. mas de tudo isso que desemboca, que dissipa, alguma coisa fica. é pouco, confesso... é porque há tempos aprendi a morrer e a nascer.

tristesse

descobrira mais tarde que, no fundo, estava mesmo é cansado dessas pessoas sem nenhum talento para amenidades que adoçam a vida.