Wednesday, July 30, 2008

le marche - III

A GUERRA INTERIOR
POR LEOPOLD NOSEK
Analistas aprendem que crenças não existem em razão de sua adequação à realidade, do que chamamos verdade. Assim são os mitos, as religiões, as convicções políticas e as utopias. Eles se organizam em função de uma relativa eficácia para o viver, permitindo as relações e o convívio humanos. Pela sua força, criam realidades. E por isso não hesitamos em eliminar quem ameaça nossas crenças estabelecidas, aquelas que criam a possibilidade de descansarmos em outra subjetividade.
Por outro lado, um analista aprende também que sofremos por crenças equivocadas, organizadas num tempo que não corresponde à nossa vida atual. Pior que concepções impróprias, contudo, é a ausência de narrativas metafóricas que dêem conta do viver cotidiano. É a área do abismo, do trauma e do terror pessoal. A maior quimera é preferível à sua ausência. É função da clínica analítica a atualização dos sonhos e também permitir sua criação nos espaços aterrorizantes de sua ausência. Sérvios, por exemplo, justificam o extermínio dos bósnios relembrando o martírio de um certo rei Casemiro, morto em tropas otomanas no século 17. O conflito atual, incompreensível e traumático, encontrava sua razão de ser neste pesadelo anacrônico.
Da mesma maneira, o conjunto de comentários em relação ao conflito do Oriente Médio tem sido de uma simplificação extrema. Qualquer palavra de ordem anti-Bush ou antiimpério ganha imediatamente a simpatia de quem é crítico à globalização e aos tempos que correm. O mais comum é a torcida pelo mais fraco. Árabes e israelenses disputam esse lugar. Até gigantes do poder econômico e militar reivindicam esse duvidoso privilégio. A simplificação divide o mundo em bons e maus.
FIM DAS CRENÇAS
Depois de 1945, vivemos um período de relativa paz. O fim do equilíbrio da Guerra Fria, contudo, liberou um estado propício ao conflito. Sem rédeas, o sistema de produção de mercadorias e de "livre comércio" prospera incrivelmente. Tem a guerra com aliado, pronto a atuar na vanguarda. E esta se dissemina. Concentram-se mais e mais os recursos necessários para a produção. A riqueza crescente é, inevitavelmente, acompanhada de exclusão crescente.
Dentre as mazelas mais eloquentes deste processo, podemos isolar uma: a destruição de crenças tradicionais. Após dois séculos de ideologia e afirmação das nacionalidades, estas se revelaram ultrapassadas para ordenar o convívio dos grupos sociais. A velocidade das transformações não permite a organização de narrativas adequadas aos novos tempos, seja para própria adaptação, seja para propor alternativas. Há como que uma regressão a ideologias de outros tempos, caracteristicamente religiosas e fundamentalistas. Isso ainda é mais agudo onde os estados tiveram formação tardia e artificial, como é o caso no Oriente Médio.
Como solução imediata, constroem-se muros, tentando delimitar ilhas de paz. A separação, além de agudizar os conflitos, é impossível. Os países desenvolvidos precisam de mão-de-obra, o comércio e intercêmbio não são dispensáveis. O deslocamento é necessário. Mesmo com um shopping center no interior de um condomínio, há necessidade de percorrer caminhos. A impossibilidade de viver intramuros se expressa no sentimento de vulnerabilidade que experimentamos quando corremos para o espaço privado dos lares no tempo de rebeliões em presídios.
A guerra do Oriente Médio está também em nossas ruas. A impossibilidade estrutural de solução nos marcos dos conflitos atuais e na carência de narrativas construídas e de utopias atualizadas aponta para a má notícia: a guerra veio para ficar.
LEOPOLD NOSEK é membro do board da Associação Psicanalítica Internacional e coordenador do Comitê Internacional de Psicanálise e Cultura.